A linguagem surgiu, cresceu e evoluiu com o homem, é viva por nós, e por nós muda e evolui, é ferramenta para um fim, não vive por si mas vive para nós. É importante pensar a língua, seus usos e sua capacidade, mas infelizmente muita mudança não é feita de forma racional, e sem que queiramos ou nos damos conta existem certos consensos no uso da língua que espalham e contaminam sem que sejam pensados ou benéficos. É inegável a influência do suporte na forma da língua e sua capacidade de comunicação, imaginem se ainda usássemos “tablets” de argila para escrever caracteres cuneiformes, grande parte da evolução social que conhecemos nunca aconteceria, como seria carregar um livro de oitocentas páginas de argila? O livro deixou o papel e agora é mais leve e prático no meio eletrônico, é inegável que haverá mudanças, mas cabe a nós verificar a verdadeira capacidade do meio digital para que a língua e literatura cresçam e não diminuam perante o passado que já tivemos.
Por falta de pensar a língua está espalhando-se uma versão capenga e mutilada que diz-se dominante por pura ignorância, ela é a versão contida nos manuais de redação e (falta de) estilo. As frases complexas compostas por subordinativos ou coordenativos, as vírgulas e definitivamente os ponto e vírgula, são recursos proscritos, e isso quando pretende-se comunicar assuntos complexos que tem diversas instâncias e vários níveis de hierarquia impossibilita a composição textual; desta maneira, o texto escrito que tem a propriedade de educar, pois pode conter assuntos em profundidade é sabotado, permitindo em sua versão mutilada expressar apenas assuntos simples ou a simplicidade leviana que mediocriza os assuntos complexos impedindo definitivamente qualquer possibilidade de real compreensão. O uso desta língua deturpada que já é norma em jornais e revistas de grande circulação tem dois efeitos: o primeiro é tornar levianos todos os assuntos que aborda uma vez que não pode aprofundar-se, antigamente liam jornais as pessoas que queriam ter um conhecimento mais profundo, hoje o conteúdo de jornais e telejornais é idêntico, com vantagens ao telejornal por ser mais rápido e atualizado; o segundo efeito diz respeito à educação do leitor, antes o jornal era uma iniciação do leitor na escrita complexa, assim ao encarar um texto de Machado de Assis o fosso não é tão grande, mas hoje com a escrita pobre dominando tudo, o leitor só encontrará alguma dificuldade nos livros, e a tarefa pode ser tão desafiadora que fará um leitor muito primário desistir. Evitar o uso da língua aleijada é uma espécie de “pièce de résistance” para não sucumbir à mediocridade geral, pode não parecer, mas muita gente bem educada e de vasta cultura, ao ler em computadores e tablets, sem perceber acabada desistindo ao meio de um texto mais exigente por cansaço, não percebem que é o meio que induz a esta imbecilidade programada; computadores e tablets não se prestam a literaturas complexas, não permitem atingir o nível de concentração necessário para decodificar estes textos, e assim, sem sequer perceber o leitor torna-se mais burro, incapaz. Talvez por isso muitos mantenham o hábito do papel, como nunca entenderam no meio eletrônico a diferença fundamental do e-reader e-ink para as outras mídias.
Existe um consenso dominante errado de que o leitor não deve ser desafiado, muito disto vem do reino da propaganda, onde um texto deve atingir o maior público possível, isto talvez o valha para quem quer vender limpadores de privada, mas é um tipo de texto que menospreza o leitor, pois considera o menor denominador comum e assim diminui o padrão de toda leitura, mas escrever é comunica-se, e dependendo do assunto, a quem se dirige o texto ou sua função, esta simplificação obrigatória é simplesmente ridícula; com isso o texto perde a função de educar o leitor, expandir seus horizontes e a capacidade de articulação lógica. As pessoas não percebem o quanto este uso de textos obrigatoriamente simplificados é degradante para a leitura, para os assuntos tratados e para o próprio poder de raciocínio. É um verdadeiro veneno que extermina todos os níveis da cultura.
Aprender e desenvolver-se exige esforço por parte do leitor, não é possível ensinar sem desafiar o leitor, esforço não é necessariamente uma coisa ruim, muito ao contrário, assim como aprender, mas nos focamos em tamanha passividade por parte de leitores que cobrar um mínimo de esforço parece heresia, há esforço prazeroso, há desafios que trazem recompensa, e o aprendizado é um deles. Desta maneira em vez de escrever para aqueles que são tão vagabundos que abandonam um texto a meio caso este lhes ofereça qualquer desafio, o melhor é focar nos objetivos mais altos, pois quem ler o texto sai ganhando e temos leitores que valem a pena. E aí vem um imbecilzinho preguiçoso nos acusar de elitistas por não sermos condescendentes e desprezarmos a capacidade cognitiva de nossos leitores, oferecendo-lhes um texto que ao desafia-los os fará crescer; cabe aqui acabarmos esta mistificação grosseira: procure por aí os textos dos fabricantes de relógios que custam o preço de carros e carros que custam o preço de casas, verá que quem evidentemente produz itens para uma elite que pode dar-se ao luxo de pagar por objetos de status não usa textos complexos, muito ao contrário, são simplórios, portanto, onde está o tal texto “elitista”? Tudo isso para mascarar que a grande cultura humana hoje está gratuita a quem dispuser-se a ler, se a dois séculos foi um item de diferenciação de classes por conta do acesso restrito, hoje não é mais, assim acusar de elitista é imbecilidade a não ser que se refira a uma elite pensante, mas pensar ainda é de graça. Muito do que pensam é errado, escrever usando todo o potencial da língua não é um fator de exclusão, muito ao contrário, é a verdadeira inclusão, mas o leitor precisa fazer o esforço de desafiar-se para ser incluído. Um texto ruim exclui sem possibilidade oposta, pois mesmo que o leitor suceda na leitura está excluído, pois nunca oferece a oportunidade de crescimento.
Até aqui falei apenas de textos predominantes em jornais e revistas que ao optarem pela simplificação da língua perdem sua capacidade de tratar de assuntos com a complexidade merecida e assim falham em informar corretamente e formar o leitor. Mas e a literatura? Aí o caso é ainda mais grave: literatura antes de mais nada é arte, diria ainda uma das mais difíceis pois não tem guias, o artista que enveredar por esta modalidade terá que criar seu próprio caminho, as regras da gramática são paupérrimas perto de toda diversidade encontrada na literatura, que às vezes a desafia frontalmente e sai ganhando esplendorosa. Literatura aprende-se lendo, é uma vivência, só se aprende fazendo, não adianta, não existe outro caminho, e justamente por este particular fabricamos monstros estranhos: pegue um garoto nos seus dezessete anos e o enfie em um curso de letras, qual sua vivência como leitor? A maioria nenhuma, e aí o encha de livros aos quais deverá fazer uma “leitura técnica” como preconizam seus mestres, o garoto que não viveu a literatura agora vai ver o texto de forma mecânica ou ideológica, resultado depois de quatro anos de faculdade: alguém que não lê mais por prazer pois não teve tempo, quatro anos é muito pouco para tantos livros, mas ganhou o título de especialista em literatura. Especialista em quê, se não teve tempo de ler? Esse garoto agora com uns vinte e um anos vai ensinar língua e literatura… Já viram o desastre, não? É o que vemos hoje, mas tem lados piores, o rapaz em vez de ensinar nas escolas escolhe a vida acadêmica e vai ser um crítico literário: o pobre menino que não teve sua vivência com os livros vai agora falar sobre livros, não do ponto de vista do leitor, mas com os estudos acadêmicos que não interessam a ninguém que não sejam seus pares; resultado: ao encontrar o livro bem escrito mas sem experimentalismos inúteis vai logo taxa-lo de: “romanesco” em tom pejorativo, e se lhe cair em mãos um texto de Machado sem a assinatura do autor dirá que não é grande coisa, mas irá elogiar vilipendiando os adjetivos quando encontrar um texto experimental e ruim que não diz nada, não quer dizer nada, nem pode ser compreendido, o ápice do nada com a coisa nenhuma, a arte do nada!
A grande estupidez no meio acadêmico ou pseudo-acadêmico, é que não conseguem mensurar a extensão de sua ignorância, criando um universo analítico que tal como a taxonomia vê o livro não como vivo, mas como peça morta a ser dissecada, a verdade é que o todo é maior que as partes; leia uma análise semiológica, ela parece com um livro da mesma maneira que a descrição taxonômica de um gato parece com o animal vivo, a academia é muito boa em guardar o passado, mas inútil na criação artística. O viés cientificista é a causa desta cegueira, primeiro e mais importante: cientificismo não é ciência, é seu uso ignorante, pois a ciência dá conta do que são as coisas. A ciência observa o que é, a arte cria o que será; ciência é observação, arte criação. Desta maneira um acadêmico ao taxar algo de romanesco repete os mesmos preconceitos dos românticos ao criticar a literatura clássica, o modernismo ficou velho e o pós-modernismo ao desvencilhar-se da estética trouxe um viés ideológico que fez da não arte uma arte, assim tudo passa a ser arte e ao mesmo tempo nada mais é, não existe arte pós-modernista, pois criou-se uma falta de conceito, cabe ao observador ou leitor ter conceitos e decidir o que é arte, pós-modernismo em essência é o sofismo moderno, o discurso vazio, o relativismo, e ninguém representa melhor isso que o meio acadêmico, pois o que era para ser o ápice do conhecimento tornou-se uma panelinha de relativistas inúteis, apodrecidos e preocupados apenas com seus próprios salários em vez de seus objetos de estudo.
A maior prova da impotência acadêmica na literatura é que a maioria dos bons escritores não vem de seus quadros, um leitor bronco mas não ignorante como o Faulkner é infinitamente mais capaz que a maioria acadêmica, é da realidade da escrita e da leitura. Escrever é a arte do ilusionismo com palavras, o leitor percebe o efeito mas não vê a mecânica, que na realidade é um conjunto de truques simples, por isso a maioria dos escritores não fala dos próprios escritos, por isso que não há manual. O escritor é um mágico que não gosta de revelar seus truques. Antes de estudar a literatura como um peixe morto é necessária vivência, deixar-se maravilhar com os truques dos vários autores, ver o texto vivo antes de partir para a dissecção, por isso criamos monstros deformados, os estudiosos nunca foram leitores, e sem ler não vêem o efeito das ilusões que formam o cerne da criação literária; o leitor vê o efeito sem conhecer o truque, o acadêmico procura o truque sem saber qual é o efeito. E assim criou-se todas essas distorções que vemos por aí, gente que louva textos ineficientes, sem efeito, trejeitosos e inúteis. Assim prospera uma literatura contemporânea estéril, inútil e enfadonha, que não cativa leitores nem cria nada de bom. Aposto mais na literatura taxada pejorativamente de entretenimento, pois há mais chances de ver real arte aí do que no lixo propagandeado pela crítica acadêmica.
Voltemos novamente ao meio, talvez por conta da influência de jornais e revistas ou pela escrita pobre de massa dos textos de propaganda, gerou-se um consenso não pensado onde o meio eletrônico só comporta textos curtos e linguagem simplória, lógico que em serviços como o twitter que limita as mensagens a grunhidos de poucos caracteres, é impossível, mas não é a realidade eletrônica, aliás, muito ao contrário, antes um livro de muitas páginas era difícil de ser impresso pois custava mais, livros comerciais eram sempre limitados a duzentas ou trezentas páginas, mais que isso só se já fosse um “bestseller” de venda garantida, caso contrário a publicação seria muito cara, no meio eletrônico não existe esta diferença, um ebook pode ter qualquer extensão que é replicado com o mesmo custo, isso é um ganho! Uma expansão da capacidade que tínhamos antes. Um texto de internet deve ser curto e de linguagem simples para que os leitores não desistam, por que focar-se em escrever um texto para quem não lê em vez de fazer ao contrário, escrever para os que lêem, tem capacidade ou não tem preguiça? Se não se está vendendo porcaria, mas se quer ter um diálogo de alto nível, não faz sentido escrever para os idiotas que não lêem. A língua em nosso cotidiano tem também a função de formar as estruturas lógicas do pensamento humano, foi analisando a conversa de crianças que Piaget percebeu que a estrutura lógica da língua induz ao pensamento complexo, se em crianças de seis anos as formulações lógicas são menos freqüentes e muitas vezes inconscientes, em garotos maiores há mais freqüência no uso lógico da língua, e sem esta vivência não há o desenvolvimento mental. Ao aleijar a língua evitamos que as pessoas treinem o intelecto e impossibilitamos o surgimento dos raciocínios complexos. O uso pobre da língua inviabiliza o pensamento complexo e mais que um estilo ou moda, induz à pobreza de pensamento, e isso reflete-se em toda cultura e vida social, é por este motivo que as visões dicotômicas e ignorantes imperam em nossa sociedade, pois qualquer complexidade além da imbecilidade binária, não tem capacidade de ser processada, todo assunto complexo que envolve mais de dois lados torna-se um problema insolúvel. Veja o uso de uma dessas simplificações ignorantes: em uma democracia todos temos direito à voz, liberdade de expressão, assim todos temos direito a uma opinião, seja ela verdade ou mentira, certa ou errada, mas tende-se a usar o “direito à opinião” como justificativa para cassar o direito de expressão do outro no caso de que discorde de nossa opinião, assim como alguém tem direito a dar uma opinião, esta opinião não impede o outro de manifestar-se contra, pois ele tem a mesma liberdade de expressão; é assim que funciona a argumentação, uma opinião recebe uma contra-opinião, um argumento recebe um contra-argumento, esta é a liberdade democrática. Quem não gosta de argumentação pois tem argumentos ruins tende a querer usar a opinião como direito de caçar a liberdade de expressão. Complicado? Não muito, mas é mais simplório dizer que “todos tem direito a uma opinião”, que é uma simplificação grosseira e que esconde a realidade do direito democrático.
Literatura é tudo menos simples, muito ao contrário, é justamente a diversidade e sua complexidade que faz sua riqueza, assim, veja como esta estrutura lingüística mutilada é derrogatória da apreciação artística da literatura que não cabe em qualquer dicotomia imbecilizante, um Hemingway não está acima de um Shakespeare, nem abaixo; é a existência de Faulkner, Cervantes, Goethe, Virginia Woolf, Defoe, Chaucer, Sterne, Conrad, Byron, Yates, Shelley, Walt Whitman, Chekov, Machado, Kafka entre muitos que faz da literatura a potência que é. E nenhum autor é uma unanimidade, veja Joyce em Ulysses e em Finnegans Wake, o primeiro foi ao limite, o segundo passou do limite, criou uma obra mutilada que perdeu o foco do leitor e empobreceu-se na língua, a soma de suas partes ficou menor que o todo. Imagine o quanto deste universo o garotinho estudante de letras já teve tempo de apreciar, quase nada, não há curso de quatro anos que substitua uma vida de leitura. Por isso a impotência acadêmica na literatura é tão gritante.
Ler, como tudo que vale a pena na vida, exige certo esforço, fazer um texto para preguiçosos que não querem ter o mínimo de esforço é escrever inutilidades, banalidades nunca farão ninguém crescer, cada grande autor criou o seu jeito de escrever, não é só questão de estilo, pois bom ou ruim todos tem um, o escritor artista criou um jeito que funciona, expande as possibilidades da linguagem para contar suas estórias, por isso cada novo autor é um novo aprendizado, um novo esforço e um novo universo expressivo, é assim que se cresce. Quem não consegue ler um bom autor confunde o ruim com o bom, não tem capacidade de diferenciar um do outro, por isso a literatura contemporânea é tão cheia de embusteiros, escritores incompetentes que mascaram sua ruindade com experimentalismo vazio.
O meio eletrônico traz novas possibilidades para a literatura, é preciso ver sua real capacidade e descartar os consensos ignorantes que mutilam a língua e os seres humanos, a literatura será o que faremos dela, é preciso conhecer a arte dos grandes homens, por prazer, criando assim a apreciação artística e o domínio da língua, seja no papel ou no e-reader e-ink mais acessível e democrático; depois de viver ler é a experiência mais próxima, vivemos uma vida, mas através da literatura vivemos milhares.
Alex